Almandrade on Fri, 11 Oct 2002 07:33:11 +0200 (CEST)


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[nettime-lat] o retorno da poesia




O RETORNO E A DÚVIDA DA POESIA
A poesia é um conhecimento à parte da razão tecnocrata que rege a sociedade
contemporânea, hoje em dia, o homem se defronta com outras oportunidades de
linguagens, outros conhecimentos, que deixou de lado o hábito da leitura,
principalmente a leitura de poesias. Diante da informática, da música
popular, do discurso político, não há lugar para a poesia. Mas de repente um
surto de poesia tomou conta da cidade, saraus, recitais, debates,
publicações, vão se espalhando e ocupando pequenos espaços nos centros
urbanos, bares, cafés, bibliotecas. Páginas na internet. Parece que a poesia
voltou a fazer parte da cidade. Mais uma ilustração da crise da linguagem,
do pensar  e da cidadania?  Afinal de contas, poesia passou a ser tudo que
alguém escreve movido por uma "inspiração", uma revolta, uma paixão, um
discurso livre e aleatório, como: a frase da mesa do bar, o bilhete da
namorada, o discurso de protesto, etc. O poeta que já foi expulso da cidade,
volta ao cenário urbano na condição de sintoma da cidade grande.
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A POESIA E A CIDADE
"Os poetas nos ajudarão a descobrir em nós uma alegria tão expressiva ao
contemplar as coisas que às vezes viveremos, diante de um objeto próximo, o
engrandecimento de nosso espaço íntimo."
(Bachelard)
Desde quando a cidade é objeto de trabalho de especialista, ela passou a ser
um corpo fragmentado e perdeu sua geografia poética. Primeiro foram os
filósofos que expulsaram os poetas de sua república, depois foram os
técnicos que destronaram a filosofia. Custou caro ao filósofo aceitar que o
saber foi uma invenção do poeta, que a eternidade da Grécia  se deve
primeiramente a um Homero e depois a um Platão. Nessa mudança de século, a
filosofia acabou ressuscitando um Sócrates arrependido, solicitando do poeta
seu retorno à  polis . Pudera, em épocas de crise sempre se apela para o
poeta, ele que nada sabe, foi adivinho do passado e é livre para falar de
suas emoções. Mas ele nada pode resolver com relação aos equívocos dos
especialistas do urbano, a não ser restaurar a poesia perdida.
A cidade de políticos e de técnicos tem problemas mais urgentes, para se
preocupar com a poesia. Acreditava-se que a tecnologia era uma solução
universal, mas se mantêm longe de dar respostas às demandas de habitação,
segurança, transporte e educação. Não se canta mais a cidade, fala-se para
lamentar seus problemas. A cidade precisa da poética e do pensamento. Quem
se ocupa de conceitos sabe, sem negar a importância da tecnologia, que a
cidade atualmente precisa mais do exercício da cidadania e das idéias, do
que intervenções técnicas sem uma compreensão mais ampla dos seus problemas.
As cidades modernas se ressentem da carência de uma nova idéia de
planejamento urbano que não a veja exclusivamente como o cenário do mercado
de trabalho. Pois a imagem urbana não se restringe àquilo que a percepção
capta, é muito mais o que a imaginação inventa com a liberdade poética. As
musas sabem que o poeta não vai salvar a cidade, mas ele é quem lida com a
fantasia e o devaneio,  indispensáveis para o sonho de uma outra expectativa
de vida urbana.

A POESIA E A LÓGICA DA LINGUAGEM
"A poesia é uma arte da linguagem; certas combinações de palavras podem
produzir uma emoção que outras não produzem, e que denominamos poética."
(Valery)

O poeta vive num canteiro de obras. A musa, o acaso,  a razão, o sentimento,
os pensamentos abstratos são matérias primas para a sua poesia. Ele produz a
partir da leitura de textos alheios, articulando idéias e costurando a
linguagem. A poesia é um trabalho que exige de quem faz uma quantidade de
reflexões, de decisões, de escolhas e de combinações. As leituras e as
experiências modificam a escrita, as palavras não são totalmente
espontâneas, como nas pinturas de um Pollock, há um trabalho e um cálculo da
escrita. A linguagem poética difere da linguagem que utilizamos para a
comunicação diária. Cada poeta explora a linguagem na busca de um
acontecimento inesperado, de uma experiência singular. A linguagem cotidiana
desaparece ao ser vivida, é substituída por um sentido. A poesia não, ela é
feita expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente
o que acabou de ser.
Numa época marcada pelo desaparecimento do durável, transmutação rápida dos
valores, sem tradição poética, a poesia retorna como um lugar de
experiências contraditórias, para atender uma necessidade de lazer e
divertimento, do que uma vontade de saber.  Os saraus, recitais e debates
têm mostrado uma ausência de uma percepção mais ampla das contradições da
cultura, particularmente da literatura. A poesia que já participou como
protagonista nos movimentos de vanguarda nos anos 20 e 50/60,  reaparece na
cena urbana deslocada de sua materialidade para falar de aparências e
emoções.

         ALMANDRADE
Artista plástico, poeta e arquiteto


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