Leonardo Palma on Thu, 25 May 2006 16:20:29 +0200 (CEST) |
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[nettime-br] Uma semana de sangue em São Paulo, e os papéis trocados de Alba Zaluar e Cláudio Lembo |
Segunda contribuição... Abraços!!!
leonardo
********* Uma semana de sangue em São Paulo, e os papéis trocados de Alba Zaluar e Cláudio Lembo
Não parece que as mortes vão parar tão cedo. De ontem (19) para hoje (20), a Secretaria de Segurança não divulgou as "estatísticas" diárias de ataques e cadáveres, como vinha fazendo desde o início da crise. Ao que tudo indica, ficou intimidada com as acusações, bem formuladas pelo Ministério Público e organizações defensoras dos direitos humanos, de que se estava pondo em ação um "Carandiru a céu aberto", alusão ao massacre de 1992. É pouco provável, entretanto, que se ponha freio ao "acerto de contas" dos policiais, que estão agindo fardados ou não (na conta oficial de 107 mortos "suspeitos", não entram as vítimas de meia dúzia de chacinas cometidas por "desconhecidos" – mesmo em São Paulo, duas ou três chacinas num mesmo dia é algo absolutamente anormal).
Quando as mortes eram preponderantemente de policiais, nos primeiros dois ou três dias, a dita "sociedade" reagiu rapidamente, pêsames públicos foram abundantes, e um ato ecumênico gigante foi organizado em tempo recorde na Praça da Sé. Nada parecido aconteceu até agora, embora já sejam pelo menos cinco dias de execuções sumárias numa escala sem precedente. E não me digam que é preciso primeiro investigar se foram mesmo execuções ou mortes em "confronto". Não há confronto militar possível quando um lado causa mais de 70 baixas (número aproximado desde que as mortes de policiais cessaram) sem sofrer nenhuma, e quando quase todas vítimas foram baleadas na cabeça.
A realidade da violência social no Brasil tem contornos bem claros, e os movimentos sociais, os "especialistas" e as organizações de direitos humanos há muito deveriam ter admitido que um discurso absolutamente simétrico não ajuda em nada a chegar ao fundo do problema. Condenar "com a mesma veemência" os ataques do tráfico e da polícia, e queixar-se da "impunidade" em geral, não ajuda a perceber que não há nenhuma
equivalência entre os distintos lados. Os ataques do PCC foram ordenados por homens que, mesmo poderosos, não o são tanto assim, caso contrário não estariam presos, e muito menos em pequenos cubículos sem televisão e outras coisas. Pablo Escobar mandou construir uma prisão-palácio particular para ele e tinha centenas de políticos, juízes e militares em suas mãos. Comparar os líderes de facções no Brasil com os comandantes dos cartéis colombianos é perder todo sentido de proporção.
Por sua vez, os comandantes das forças oficiais de repressão são, estes sim, muito poderosos e inatingíveis. Quantos casos de coronéis (para não falar de generais) caídos nos combates da "guerra urbana" existem? Qual foi a maior patente entre os 41 mortos das forças oficiais? Um cabo. Entre os policiais civis, nenhum delegado. Não foi "o Estado" em geral que foi atacado, foram seus agentes de mais baixo escalão, aqueles que são obrigados a sujar as mãos enquanto o comando branco e rico (civil e militar) distribui ordens na tranqüilidade e segurança de seus escritórios e palácios.
Ainda pior direcionado é o discurso da "impunidade". Desde quando existe "bandido" impune no Brasil? Mesmo aqueles entre os mais poderosos (Beira-Mar, Marcola, etc), estão presos ou não? As prisões não estão superlotadas e cada vez mais caóticas? Isso sem falar nos muitos milhares de executados sem nenhum tipo de julgamento, nem mesmo segundo os padrões absurdos da justiça criminal no Brasil, onde o depoimento solitário de um policial é suficiente para colocar um jovem atrás das grades para o resto de sua vida. Há muito tenho chamado a atenção de jovens com quem converso em favelas e ocupações: você conhece algum bandido com mais de trinta anos que não esteja morto ou preso? Infelizmente, muitos já perderam a perspectiva de viver tanto assim, e esse meu discurso já não me parece tão eficaz.
Agora, o outro lado. Quantos torturadores, chacinadores e "justiceiros" já foram efetivamente condenados no Brasil? Cite-me o nome de um general que foi sequer levado a julgamento por seus crimes durante a ditadura militar (neste aspecto, só temos que nos envergonhar diante da Argentina ou do Chile, embora mesmo nestes países a justiça está longe de ter sido feita). Quanta dificuldade para condenar até os comandantes de casos de repercussão internacional: Ubiratan e Pantoja ainda estão livres. E aqui no Rio, os Sivucas, Laranjeiras, Murilos, etc? Qualquer pessoa que não tenha os olhos vendados pelo preconceito ou pela má fé só pode concluir que a "impunidade" existe apenas para um lado. Para a polícia, sim, podemos afirmar que a impunidade funciona como uma "licença para matar". Historicamente, em condições assim, o lado em desvantagem invariavelmente é compelido a tentar equilibrar o jogo "fazendo justiça com as próprias mãos".
Simplesmente lembrando isso podemos ser capazes de entender boa parte do que está acontecendo em São Paulo.
Alba Zaluar e seus devaneios sobre o "PCC de extrema-esquerda"
Mas, a reação dominante entre as "autoridades" e entre aqueles setores que têm acesso garantido aos grandes meios de comunicação tem sido a mesma que caracteriza a classe dominante há décadas: pedem mais punição, leis mais severas, mais isolamento, mais "investimentos em segurança", enfim, mais PPP, polícia, prisão e porrada. Os mais "moderados" dizem que não é preciso endurecer as leis, mas que é preciso sinalizar ao crime a "certeza da punição". É impressionante como tanta gente que se julga inteligente não consegue nem se aproximar da lógica de quem adota o crime como profissão hoje no Brasil. Os líderes do PCC não ordenam ataques porque se acham intocáveis, mas porque já estão presos ou condenados, e não têm muito a perder, mas muito dinheiro que não podem gastar como gostariam. Já a "base" do PCC é formada por aquela juventude que já desistiu de tentar viver, que está programada não para matar, mas para morrer, seja por overdose ou "trocando" com a polícia ou outro bandido. Não há perspectiva de "punição" (legal ou ilegal) que os segure. Ou melhor, quanto mais punição, mais candidatos a "bin laden" se multiplicarão.
Mas, desta vez, a coisa tomou proporções realmente grandes, mexeu nas bases do senso comum, e aqui e ali aparecem figuras dizendo coisas inesperadas, seja pelo que dizem, seja por quem diz.
Sempre existiram aqueles setores ultra-direitistas que tentam mostrar uma ligação entre o "crime organizado" e "movimentos revolucionários de esquerda". Falam de "narcoguerrilha", constroem ficções de redes internacionais conjuntas entre narcotráfico e "terrorismo", fazem uma equivalência entre bandidos e MST, etc. Mas, exatamente por partir de direitistas assumidos ou meios de comunicação podres como a "Veja", é pouca gente pensante que os leva a sério.
Mas, os seguidores de Bush, Sharon e Opus Dei ganharam aliados improváveis desta vez. Alba Zaluar é uma antropóloga com certo renome, inclusive em meios "de esquerda", como pesquisadora da violência e da criminalidade em que se envolvem os pobres (porque ainda não há nenhum "especialista" da criminalidade dos ricos?). Já há algum tempo ela vem adotando um discurso ambíguo, reduzindo o papel da desigualdade social e injustiça como explicação para a violência social, mas realmente não esperava algo como a entrevista publicada pela Folha de São Paulo no dia 15. Alba resolveu dar destaque precisamente à "retórica política de grupos de extrema esquerda da Colômbia, da Bolívia, do Peru", que estaria "contaminando esse pessoal" (do tráfico). E no final da entrevista assume o tom de pregação:
"Não vamos deixar que essas idéias, que essa ideologia... Que no meu entender é atrasadíssima, é antidemocrática, uma esquerda que já mostrou que deu errado em vários países da América Latina. Como é que vamos deixar a nossa juventude ser conquistada por isso? [jornalista da Folha - Como?] Não pode. Batalhar também nessa área cultural, da ideologia. E não ficar só repetindo, ah! coitadinhos, são pobrezinhos, a desigualdade brasileira."
Do abandono da denúncia da desigualdade à pregação da luta ideológica contra a "extrema-esquerda latino-americana", raramente vi casos tão lamentáveis de rendição intelectual ao pensamento dominante. Alguém poderia pensar que Zaluar refere-se a forças guerrilheiras problemáticas e polêmicas como as FARC e o Sendero Luminoso, mas não é isso, ela generaliza e inclui maldosamente na sua lista a Bolívia, onde há décadas não existe atividade guerrilheira de expressão.
Alba Zaluar teria todas as condições de fazer uma análise equilibrada, pois trabalha com um conceito de "crime-negócio" que poderia levá-la a se concentrar na lógica capitalista do comando do tráfico, na busca do lucro que inclui necessariamente a busca de mercado e a competição, bem como formas de manter sob controle os "trabalhadores" (a "base" do tráfico). Mas ela prefere fazer uma distinção ilusória entre um "capitalismo bom" e um "capitalismo mau":
"O tráfico de drogas é um sistema capitalista, o mais selvagem que se tem notícia, porque não tem nenhum limite institucional e moral. O resto do sistema capitalista está sujeito a leis, a regras, a restrições de várias ordens. É claro que tem ilegalidade também [no capitalismo]. O caixa dois é um deles. Mas no tráfico de drogas não tem nem caixa dois porque não tem caixa um."
Deixando por um momento de lado o fato incontestável de que é impossível separar completamente o capitalismo "ilegal" do capitalismo "legal" (a "lavagem de dinheiro" é apenas um dos muitos laços entre eles), o problema é que Zaluar fixa-se no secundário ("leis, regras e restrições") e não na base mesmo do capitalismo, a exploração e a busca do lucro e da acumulação. Todo capitalista sempre buscará mercado, realizar seu lucro e acumular seu capital; se não puder fazê-lo dentro da lei usará a violência, seja invadindo o Iraque para controlar as fontes de petróleo, seja organizando uma facção criminosa no Rio ou em São Paulo. Zaluar torce tudo e identifica o "capitalismo bom" com a democracia e o "capitalismo mau" com a "esquerda anti-democrática"!
O narcotráfico é um capitalismo que não conta com o Estado para protegê-lo (a não ser mediante corrupção), por isso tem que se tornar ao mesmo tempo empresa e Estado. Como todo Estado, ele se arma e constrói uma hierarquia de comando, mas, também, como todo Estado, ele precisa de um discurso justificador ante seus "cidadãos". Para usar a distinção de Zaluar, o Estado "bom" justifica-se como "Estado democrático de direito". O Estado "mau" (narcotráfico) não pode reivindicar a lei, mas pode alegar a busca de algum "direito": num nível mais imediato e eficaz, os direitos humanos da população carcerária. Num outro nível, mais abstrato, os "direitos" das populações pobres oprimidas pela polícia.
A legitimidade do Estado "convencional" não é simplesmente uma enganação, para cumprir seu papel fundamental de garantia do funcionamento do capital "legal", o Estado tem que efetivamente assumir, ainda que parcialmente, algumas funções sociais necessárias à vida em coletividade. A polícia é fundamentalmente um instrumento brutal de manutenção dos privilégios da minoria rica, mas também executa, secundariamente, ações como controle do trânsito, auxílio a pessoas atacadas por indivíduos anti-sociais, etc. O mesmo se aplica ao Estado "ilegal". O PCC é fundamentalmente um instrumento brutal de garantia do lucro e do poder da cúpula do narcotráfico, mas para ter legitimidade e controle face à grande massa de prisioneiros e assalariados do tráfico, tem que efetivamente lutar por melhores condições nas prisões para todos, e mesmo por algumas funções análogas à da polícia (e da justiça) nas comunidades.
O PCC usa um linguajar "de esquerda" da mesma maneira e pelas mesmas razões que o Estado "convencional" fala de liberdade, justiça e equidade como seus princípios constitutivos. Tanto em um caso como em outro, o objetivo é capturar os valores e o discurso dos oprimidos, e uma parte reduzida de suas práticas coletivas, para impedir o surgimento de verdadeiros movimentos revolucionários dos explorados.
O PCC não usa a "retórica política de grupos de extrema esquerda" porque está sendo "influenciado" por organizações revolucionárias, mas exatamente para impedir que movimentos da esquerda revolucionária tenham influência na juventude pobre e oprimida que fornece seus soldados, vapores, endoladores, etc. Não é a força da esquerda revolucionária que explica a força do PCC, ao contrário, é sua grande fraqueza e dispersão, seu afastamento do trabalho de base, e a hegemonia dos discursos reformistas, institucionais e elitistas. Há muito tempo tenho dito: a única maneira de afastar a juventude das favelas e periferias do domínio dos capitalistas do tráfico, é oferecer-lhe a verdadeira alternativa da revolução.
A surpreendente "mea culpa" da burguesia nas palavras de Cláudio Lembo
A bandeira da denúncia da desigualdade e da injustiça, abandonada por Alba Zaluar, foi recuperada alguns dias depois, nas mesmas páginas da Folha de São Paulo, por ninguém menos que o governador de São Paulo. Na mesma entrevista onde começou negando cinicamente as execuções sumárias e a matança da polícia, disparou ataques violentos contra o cinismo e a maldade da "minoria branca muito perversa", usando termos que Zaluar classificaria como típicos da "extrema-esquerda atrasadíssima e antidemocrática":
"O que eu vi [nas entrevistas para a Folha] foram dondocas de São Paulo dizendo coisinhas lindas. Não podiam dizer tanta tolice. Todos são bonzinhos publicamente. E depois exploram a sociedade, seus serviçais, exploram todos os serviços públicos. Querem estar sempre nos palácios dos governos porque querem ter benesses do governo... A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira no sentido de haver mais empregos, mais educação, mais solidariedade, mais diálogo e reciprocidade de situações."
O velho político do PFL não parou por aí. Em entrevista ao Globo hoje (20) continuou com seu "duplo pensar" (expressão utilizada por ele na entrevista à Folha criticando a elite hipócrita) de ser cínico (mais uma vez negando as execuções sumárias e defendendo a polícia) e de atacar o cinismo, chegando a dizer que "1964 [o golpe militar] fez muito mal ao Brasil". Será que também estava pensando no mal que foi e é essa polícia violenta e corrupta, cultivada precisamente nos tempos da ditadura?
O que pode ter feito o ex-vice de Alckmin surtar? Enfrentar uma crise desse tamanho num mandato tampão de poucos meses desequilibra qualquer um, mas ele não se desequilibrou tanto a ponto de dizer as verdades sobre o que a polícia está fazendo. Por trás do desabafo, além de um desconcerto genuíno diante de tanta violência, pode estar uma reação emocional a uma situação que todos os governantes civis do país vivem, ter que conviver e submeter-se ao verdadeiro "poder paralelo" formado pela elite militar e paramilitar cujas fortalezas são quartéis, batalhões da PM e delegacias.
Nenhum governante eleito no Brasil desde o fim oficial da ditadura (com exceção parcial do Brizola em seu primeiro governo no Rio) enfrentou de fato este submundo militar e policial de torturadores e exterminadores. Mais cedo ou mais tarde, eles acabaram por reconhecer o poder de vida e de morte que eles têm, e concluíram com eles acordos mais ou menos formais. Para Lembo, esse processo deve ter sido muito rápido e traumático, devido aos ataques do PCC. Talvez isso explique suas palavras surpreendentes, que poderiam ser melhor traduzidas assim:
"A burguesia brasileira, herdeira direta da elite escravocrata branca, caiu num círculo vicioso de desigualdade e violência. Desde que optou por tentar controlar as conseqüências da desigualdade e injustiça social extremas que ela mesma provoca, através da violência oficial e paramilitar, tem sido obrigada a manter e ampliar uma estrutura repressiva cada vez mais mortífera, corrupta e autônoma, a qual, longe de reduzir a criminalidade, a amplia, e faz dela pretexto para continuar toda-poderosa."
Nas palavras deliciosamente inesperadas de Lembo, será que há algum sinal de que a velha elite carcomida quer romper esse círculo vicioso? Não parece, até agora o velho governador está totalmente isolado, e mesmo ele não teve a coragem de tocar o dedo na ferida e questionar as ações da polícia. Até uma mudança real na conjuntura, não nos parece haver nenhum outro caminho a não ser a organização dos explorados e oprimidos desde baixo, um processo que pode ser longo, penoso e perigoso, mas que não depende dos duvidosos humores de burgueses arrependidos e intelectuais claudicantes de classe média.
Maurício Campos Maio de 2006
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